quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Quem é o Inimigo?

São tão comuns os traumas que ferem as famílias de um modo geral, no mundo todo, em todas as épocas, que vem bem a calhar uma pergunta ao mesmo tempo simples e insidiosa: quem, afinal, é o nosso grande inimigo?

Não, não vamos entrar na contenda filosófico-ocultista do conceito de "Bem X Mal"... Essa deliciosa polêmica é até mesmo de reluzente interesse para os estudos a que nos devotamos. Mas fiquemos, aqui e agora, no terra-a-terra das circunstâncias humanas que habitam nossa Vida sem exceções. Sejamos simplistas sem perder o senso crítico e objetividade.

Se imenso é o número de pessoas afetadas --- e hoje mais do que nunca --- pelos males da depressão, ansiedade, estresse, síndrome do pânico, labilidade emocional, síndrome de Burnout, não menos expressivo é a quantidade de pessoas que a Vida, nos moldes em que as relações familiares se desenvolveram hodiernamente, mantêm na mais danosa imaturidade mesmo após o terceiro ciclo setenário de sua existência.


Vamos nos ater ao geral, ao comum, garantindo uma meditação válida para a maioria dos casos. Exceções sempre existirão.


Nas famílias de mais baixa renda os adolescentes costumam envolver-se com o desencanto que a precariedade financeira lhes traz à experiência. Continua o jogo de futebol com os colegas. Às vezes, jogam vôlei ou basquete, mas o futebol ainda é a preferência. Em cada casa, normalmente sem acabamento externo, com móveis simples e apenas os indispensáveis, há um televisor moderno que, de alguma forma, lícita ou não, recebe o sinal dos mais variados canais a cabo. Deixam a meninice para trás com a crescente certeza de que há mesmo um mundo diferente daquele em que vivem, com mais prazeres, com mais beleza, com miríades de divertimentos, smartphones, tablets, computadores, estações de jogos e jogos cada vez mais sedutores, com gráficos perfeitos. Há também toneladas de filmes que, na ausência de outros elementos de convencimento, incutem na mente jovial a convicção de que existe um autêntico glamour na ilicitude de quem vence um certo "sistema" e arrebata para si os "ganhos sociais" que uma tal de "elite" vem lhes roubando desde os tempos de seus avós. Não, ainda há mais tempo!

Se a classe social desses jovens coincidir com os arrabaldes de uma metrópole putrefada de drogas, prostituição, furtos, roubos, e imposição de poder por mera violência, o resultado costuma ser o voluntariado operoso pela militância criminosa. Pés em chinelos de tiras, bermudas abaixo do joelho e grandes bolsos, camisetas sem mangas, bonés, compõem o fardamento de um exército sob rigorosa disciplina de jovens alguns poucos anos mais velhos. Sorrisos largos e olhos desafiadores são fotografados com um fuzil de assalto com bandoleira e carregador extendido, na típica pose dos que encontram alguma "dignidade" e espírito de corpo. São as falanges, comandos, enfim, entes coletivos estruturados para as estratégias de recuperação dos valores que as elites esbulharam sob o mais terrível mal a se combater: os criminosos de colarinho branco, ou seja, todos os "ricos" que existem, todos envolvidos no esquema de exploração da população espoliada. 

Com uma veemente certeza de que a vida é exatamente assim, os adolescentes não conseguem ouvir a triste ladainha dos velhos de sua casa que, como efeito do medo deformante causado pelas elites, não podem mais ser levados a sério, senão como um cenário comum que, segundo todos os demais jovens reportam suportar, somente causa idêntico sofrimento em seus lares. "Pô, que saco!". 

Mais uns poucos anos de interação com esse mundo de possível reconquista e duas possibilidades se abrem. Ou a história termina sob um petardo certeiro de um fuzil carregado por um bem treinado militar policial, ou a história prossegue e o jovem é promovido, passando a ter mais e mais envolvimento com o sistema paralelo que constitui a sociedade em que vive: o crime organizado. Mas então já não está com tanta certeza acerca dos motivos que enobrecem sua guerra de reconquista. Sem tecer comentários, vai se dando conta de que, afinal, é o que é, um bandido, um delinquente, uma pessoa que a esmagadora maioria do restante da imensa cidade considera apenas como um malfeitor que merece mesmo ser abatido a tiros pelos homens fardados.

É ainda de pouca idade, porém já está até a raiz dos cabelos aprisionado no piche da criminalidade. Se tentar simplesmente sair do "esquema", seus próprios companheiros não hesitarão em exterminá-lo. A ladainha dos velhos é relembrada com mágoa, já que continua sentindo-se uma "vítima" da falta de oportunidades e ausência de uma eficaz boa orientação. Se continuar vivo mais alguns anos, com certeza já não pensará nesses aspectos "menores e pueris da existência".

Toda essa saga poderia ser reescrita com fácil adaptação para jovens oriundos de lares muitíssimo mais confortáveis e famílias com oportunidades concretas de autorrealização. Paradoxalmente, esses adolescentes deixam aflorar em si mesmos uma noção, quase nunca sequer sugerida por seus pais, de que o mundo é assim desde sempre. A humanidade não mudou nada desde que surgiu, apenas conquistou mais tecnologia. O mundo é dos espertos, consoante uma deformada releitura do Neodarwinismo. Mesmo desconhecendo  Nietzsche (ou até por "conhecê-lo"), concebem-se como super-humanos que têm o dom natural de impor-se, vencer, conquistar. Evitam, igualmente, ouvir os mais velhos de sua família temendo-lhes a obsolescência, chaga que lhes causa aversão e medo, como se fosse altamente contagiosa.

Não se preocupam com conceitos como "justiça social" ou "igualdade de oportunidades", tampouco "meritocracia". A meritocracia deles é a capacidade de atingir os objetivos seja como for, passando por sobre quem e o que for necessário. 

Enfim...

Juntamente com a evolução e eliminação de conceitos machistas, houve a dissolução, como efeito colateral, daqueles deveres de cooperação com o ente familiar. O rapazinho e a garota passaram a se ver como projetos de si mesmos sob o débito absoluto de apoio dos pais, independentemente da concordância deles com esse ou aquele caminho adotado. Alguns chegam a sentir-se no "direito" de ser financiados integralmente nos festejos norturnos, nas rodadas de noite afora por toda a madrugada. Sorriem ao ver a preocupação patológica dos pais.

Não são poucos os pais que sabem que isso tem sido assim há alguns anos.

Contudo, há também adolescentes que, independentemente de pertencerem a esse ou àquele segmento da sociedade, observando o mundo exibido nos televisores não chegam necessariamente a concepções jihadistas de reconquista ou de mera tomada à força das coisas que deseja. Tampouco acham que o mundo pertence aos mais fortes, sob quaisquer preços ou meios.

Voltemos um pouco a tempos idos.

Nos séculos anteriores o rapaz desde seus catorze ou quinze anos já passava a sentir parte do peso das responsabilidades de seu lar. Além do estudo (para os poucos que podiam estudar além da formação mínima), o jovem se via envolto nas ações de manutenção da casa. Garotas ajudavam suas mães consoante a cultura então vigente dos "serviços femininos", enquanto os meninos estavam sob a fiscalização e cobrança dos pais, mantendo a grama aparada, as calhas limpas, o lixo recolhido e levado a destino, os pequenos consertos que portas, portões, armários e estruturas menores demandavam. Alguns, inclusive, se aventuravam por pequenos ajustes nos circuitos elétricos domésticos.


Há ainda quem bem se lembre que, um dia, já foi assim. Tal postura, guardadas as devidas proporções e as modificações sadias que a evolução certamente traria, com a diminuição dos preconceitos, é o que ocorre em poucas famílias hoje em dia. Depende do bom senso maior das pessoas que compõem o ente familiar.

Nessas famílias, bem menos numerosas, garotos e garotas cooperam com o esforço quase sempre extenuante de pais preocupados, carinhosos, mas muitas vezes ocupados demais para demonstrar todo o amor que nutrem por seus jovens filhos. Nem por isso tomam-se de revoltas pasteurizadas sob embalagens vendidas a preços módicos. Esses jovens dão mais atenção aos momentos de alegria no lar, deixando como meros infortúnios os instantes de dor pelas rusgas ainda onipresentes em qualquer grupo humano.

Chega... Já podemos formular uma outra pergunta insidiosamente preparatória para o tema inicial deste texto.

Como deixamos que a regra se tornasse exceção?

Não creio que alguém tenha uma resposta simples para isso. Impotência, desleixo, ignorância, descuido na absorção pelos combates comuns do dia a dia... Na verdade, nada parece responder adequadamente porque há uma mistura de causas que se alternam ou concorrem conforme o tempo passa.

Mas, sim, o fato é que nós deixamos que a regra se tornasse exceção.

Aquele padrão de jovem imbuído de seus deveres perante sua família e na preparação para a vida chega a ser um invejado item no rol dos sonhos de todos os que já vêm os primeiros sinais de desvio em seus filhos. Filhos ainda e para sempre totalmente amados.

Todos os bebês, nenéns, pequeninos curumins vão se alterando. 

Bem, eu acho que, talvez, essa deformação da família não seja, por assim dizer, "o Inimigo"; porém tenho convicção de que é "um forte Inimigo" de todos os que se colocam na missão de forjar os filhos para a vida.

Como quase sempre, causa-nos desconforto inconfessável a constatação de que nós mesmos colaboramos para que assim o mundo tenha se tornado.

Você já assistiu ao filme "O Advogado do Diabo", com os inexcedíveis Al Pacino e Keanu Reeves? É uma fantasia. É um filme que trata como verdade objetiva a figura de Lúcifer e dos anjos caídos. Mas, ambientando-se na atividade excitante de um grande escritório de advocacia em Nova York, põe o simbolismo, a mitologia do pecado original e tudo o mais sob um roteiro primoroso. É um filme que nos faz pensar. E muito (salvo, é claro, para quem o assiste com senso de mero divertimento destinado ao esquecimento).

Uma das passagens mais interessantes do filme (creio que a mais importante), é o próprio Diabo dando seguidos e maravilhosos conselhos ao noviço causídico, conclamando a muito maior importância da família em cotejo com o extenuante ritmo do trabalho. A decidão tomada em favor da continuidade do trabalho é do noviço, tanto quanto mais ressoam-lhe os bons conselhos. No final do filme é relembrado esse fato pelo Diabo, despertando o noviço para a simples realidade ser seu o livre arbítrio, não dele.

Por que o menciono?

Porque também nós, pais de família, seguidamente damos ouvidos a conselhos da vida que nos soam maravilhosos. A sociedade evolui. As crianças, agora, já nascem falando, são muito mais espertas. Não podemos tratar nossos tesouros, hoje em dia, da mesma forma antiquada e castradora de nossos antepassados. Temos que fazer com que os filhos saibam que somos seus amigos, muito mais do que pais. Temos que torná-los capazes de nos dizer qualquer coisa, mesmo que isso custe toda a nossa autoridade familiar.

São frases que representam valores interessantes. Todavia, muito mais sorrateiramente, são frases que nos tocam o interior com uma deliciosa dispensa de um esforço maior em observar, cuidar, orientar, cobrar, negar e aplicar castigos quando necessário. É uma fórmula alquímica espetacular. Afinal, "é um saco" ter que ficar, depois de tanto trabalho cansativo, percorrendo a longa planilha dos deveres que todos os pais, querendo ou não, têm para com seus filhos.

Estou bem propenso a dar crédito de Verdade com "V" maiúsculo, a essa mensagem escancarada pelo magnífico diabo Al Pacino, sob o olhar quase indefeso de Keanu Reeves. Claro que estar tal mensagem numa sequência de cinema vai trazer a alguns (ou a muitos) um torcer de nariz. Não importa. Ainda acho tão válido como ter lido num livro milenar de sabedoria.

Eis aí o nosso GRANDE INIMIGO.

Somos nós mesmos. Todo o louvor aos que sabem escapar dessa insidiosa forma de autocorrupção por toda sorte de sofismas acalentadores.